Ci∙ên∙ci∙a. Substantivo feminino. “Corpo de conhecimentos sistematizados adquiridos via observação, identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de fenômenos e fatos, e formulados metódica e racionalmente”. É assim que está lá no dicionário. Na prática, significa que um novo conhecimento (ou um grupo deles) será construído com base em um método, algo que possa ser reproduzido por outras cientistas. Não precisamos gastar muitos caracteres para explicar que cientistas são pessoas, certo? E como tais, estão sujeitas a todas as interferências (que costumo chamar de atravessamentos) relativas à sua humanidade.
Alguém que me lê acredita ser possível destacar a parte humana de uma pessoa e deixá-la só com características que a confeririam técnica, imparcialidade e invulnerabilidade? Assim, temporariamente, em horário comercial, só para desempenhar seu trabalho de forma mais eficiente? Se a resposta é não, como esperar que cientistas não sejam atravessadas por questões que afetam sua existência e subjetividade como a sexualidade, por exemplo?
Há vários estudos que fornecem detalhes sobre as dificuldades diárias, assédio, intimidação, medos, exclusão e discriminação vividas por cientistas LGBTQIA+ [1]. Também documentam algumas das conseqüências negativas percebidas na carreira do professor LGBTQIA+, incluindo discriminação na contratação, permanência e promoção, exclusão de redes acadêmicas e profissionais e desvalorização do trabalho acadêmico em temas heterodissidentes [2].
É de se esperar que cientistas (especialmente de exatas) considerem a identidade sexual de um indivíduo como irrelevante no ambiente de trabalho científico. De acordo com esta perspectiva, as características individuais geralmente não devem ter nenhum papel em trabalho científico, pois o método científico oferece uma garantia de objetividade; assim, indiferença à vida pessoal dos indivíduos, e uma crença na sua irrelevância para a pesquisa científica, é particularmente comum entre acadêmicos. Ademais, como poucos pesquisadores das ciências exatas examinam fenômenos sociais em suas próprias pesquisas, eles e elas podem ser menos influenciados por desenvolvimentos teóricos que têm uma compreensão avançada da construção social e implicações da sexualidade, raça e etnia, classe e gênero [3,4]. Esta falta de entendimento torna o clima no ambiente de trabalho desfavorável aos cientistas LGBTQIA+ (e outras inseridos em recortes não hegemônicos).
As organizações Institute of Physics, Royal Astronomical Society and Royal Society of Chemistry publicaram um relatório sobre o clima de trabalho para cientistas LGBTQIA+ da física. Entre os achados da pesquisa há que locais de trabalho com cientistas abertamente LGBTQIA+ são mais acolhedores e que fazer o melhor pela ciência significa reter cientistas LGBTQIA+. Concluíram que 28% dos LGBTQIA+ entrevistados afirmaram que tinham, em algum momento, considerado sair de seu local de trabalho por causa do clima ou da discriminação em relação a sua sexualidade e que quase metade de todos aqueles que se declararam pessoas trans havia considerado deixar seu local de trabalho por causa do clima, sendo que quase 20% deles consideram isso com frequência.
Foi Thomas McIntyre Cooley (1824-1898), jurista norte-americano e presidente da suprema corte de Michigan, quem cunhou, em 1888, a expressão o direito de estar só (the right to be let alone) que evoluiu para o conceito do direito de privacidade. Tal direito é uma manifestação, no âmbito das relações interpessoais, do próprio direito de liberdade. Diante da importância particular que a sexualidade assume na construção da subjetividade e no estabelecimento de relações pessoais e sociais, o direito à livre expressão sexual, é concretização mais que necessária do direito humano à liberdade [8].
Vemos aqui então, que a livre expressão das subjetividades que formam os seres enquanto indivíduos, entre elas a sexualidade, é fundamental e deveria ser garantida. Se essa garantia não vier sob o conceito de empatia que venha sob a justificativa produtivista, uma vez que cientistas mais confiantes, com o sentimento de pertencimento àquele grupo ou laboratório são mais eficientes e a ciência não pode abrir mão de suas ‘operárias’.
Já imaginou a ciência sem Sir Francis Bacon (pai do método científico), Florence Nightingale (enfermeira pioneira e excelente estatística), Alan Hart (médico trans, especialista em saúde pública com excelentes contribuições no manejo da tuberculose) ou Alan Turing (matemático conhecido como o pai da computação)? Todos eles e ela faziam parte da comunidade LGBTQIA+. Nesse mês do orgulho LGBTQIA+, fica o convite para que todas as cientistas possam sentar-se à mesa da ciência e que nesta, sempre tenha espaço para mais uma de nós.
Referências
1. BILIMORIA, Diana; STEWART, Abigail J., “Don’t Ask, Don’t Tell”: The Academic Climate for Lesbian, Gay, Bisexual, and Transgender Faculty in Science and Engineering, NWSA Journal, v. 21, n. 2, p. 85–103, 2009.
2. TAYLOR, Verta; RAEBURN, Nicole C. “Identity Politics as High-Risk Activism: Career Consequences for Lesbian, Gay, and Bisexual Sociologists.” Social Problems 42(2): 252–73. The National Academies.1995.
3. SHIELDS, Stephanie A. “Gender: An Intersectional Perspective.” Sex Roles 59: 301–11. 2008.
4. WEBER, Lynn. “A Conceptual Framework for Understanding Race, Class, Gender, and Sexuality.” Psychology of Women Quarterly 22: 13–32. 1998.
5. SCHEIN, Edgar H. Organizational Culture and Leadership. 2nd ed. San Francisco: Jossey-Bass. 1992.
6. Settles, Isis H., Lilia M. Cortina, Janet E. Malley, and Abigail J. Stewart. 2006. “The Climate for Women in Academic Science: The Good, the Bad, and the Changeable.” Psychology of Women Quarterly 30: 47–58.
7. Settles, Isis H., Lilia M. Cortina, Abigail J. Stewart, and Janet E. Malley. 2007. “Voice Matters: Buffering the Impact of a Negative Climate for Women in Science.” Psychology of Women Quarterly 31: 270–81.
8. RIOS, Roger Raupp. Direitos humanos, direitos sexuais e homossexualidade. Amazônica, v. 3, n. 2, p. 288–298, 2011.