Trabalhando na era coronavírus ou como meu dia mudou

Trabalhando na era coronavírus ou como meu dia mudou

Publicado 7 abril, 2021 por Janaina Dutra

Chego ao hospital com um saquinho com três pães (um para mim e para mais dois colegas), abro meu setor, acendo as luzes e começo a reunir objetos de teste e as fontes radioativas para aferir os equipamentos da seção de medicina nuclear do hospital de câncer onde trabalho. É uma movimentação e tanto. São três grandes equipamentos e, enquanto caminho pelo setor preparando fontes, atenta aos tempos dos controles de qualidade de cada um deles, pergunto como está a netinha da auxiliar de limpeza, converso sobre maternidade com a médica que tem três filhos mais velhos que os meus, peço a receita da torta salgada maravilhosa da técnica de enfermagem e discuto protocolos com um físico amigo meu. Na verdade, não faço mais nada disso há quatro semanas. Todo o balé que compreendia minhas tarefas e a chegada de funcionários e pacientes silenciou e foi substituído por falas e aproximações essenciais abafadas por máscaras e luvas intocáveis. O contato físico, agora quase inexistente, foi trocado pela incessante lavagem das mãos e higienizações com álcool gel.

Apesar de todos os meus estudos formais terem sido na área de exatas, sou uma profissional de saúde. E, como uma física dentro de um hospital, considero-me um pouco como uma “forasteira de dentro” da Patrícia Hill Collins ou uma “estrangeira” de Simmel nessa interface entre a rigidez da física e a imprevisibilidade da medicina. De onde eu falo, há muitos privilégios nesse momento. O hospital no qual trabalho não é generalista, ou seja, atende um grupo bem específico de pacientes e a posição que exerço não está exatamente na ponta do enfrentamento do COVID-19. Ainda assim, o que vejo em minha prática diária, são pessoas, profissionais da saúde, que estão trabalhando em carga total, no limite da exaustão, do medo, da insegurança para atenderem a população no meio desta pandemia.

Tenho uma colega enfermeira, cujo marido é dono de uma loja que está fechada por conta da necessidade de isolamento social. E para dar conta das suas responsabilidades financeiras (os dois sustentam uma família extensa), ela passou a fazer plantões extras noturnos, que pagam mais. Mas na prática, o que isso significa é que ela está, voluntariamente, se expondo mais à possibilidade de contaminação por um contexto econômico, que certamente não está dissociado de nossas preocupações.

Somos mães, filhos, cuidadores e cuidadoras que fomos jogadas nesse caos e que, a cada semana, recebemos orientações diferentes para administrar a crise (uma vez que tudo é muito novo para nós). É exaustivo, mas seguiremos.

Casa foto criado por crowf – br.freepik.com

A despeito do que muito foi dito nestes últimos 15 meses, são os profissionais da saúde pública, servidores e servidoras, cientistas de universidades públicas que têm trabalhado dobrado para conter esta pandemia. É a eles e elas a quem devemos nossa gratidão e é deles e delas que devemos lembrar quando falarmos em recursos para saúde, educação, ciência e tecnologia. Li hoje um artigo que dizia “cientista não acredita, cientista testa”, nós fomos treinadas a seguir um método e várias recomendações rígidas de confiabilidade para garantir que tudo que estudamos possa ser reproduzido com segurança. E o que a ciência te diz hoje é, se puder, fique em casa. Fique em casa para que, aqueles que não possam, consigam trabalhar mais seguros e para que eu possa voltar a trabalhar o quanto antes com meu saquinho de pão.

Referências:

Patricia Hill Collins. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado – Volume 31, Número 1, Janeiro/Abril 2016. http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf

Georg Simmel. O estrangeiro. 1950 https://www.academia.edu/9565522/Georg_Simmel_-_O_Estrangeiro

Stephen M. Kissler, Christine Tedijanto, Edward Goldstein, Yonatan H. Grad, Marc Lipsitch. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the postpandemic period. Report | Science. 14 abril 2020 DOI: 10.1126/science.abb5793

Correia, Sergio and Luck, Stephan and Verner, Emil, Pandemics Depress the Economy, Public Health Interventions Do Not: Evidence from the 1918 Flu (March 30, 2020). https://ssrn.com/abstract=3561560

Mariana Schreiber. BBC News Brasil em Brasília. Cidades dos EUA que usaram isolamento social contra gripe espanhola tiveram recuperação econômica mais rápida, diz estudo. 28 março 2020. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52075870

Ignacio Fariza. El País. Lições de 1918: as cidades que se anteciparam no distanciamento social cresceram mais após a pandemia. 30 março 2020. https://brasil.elpais.com/economia/2020-03-30/licoes-de-1918-as-cidades-que-se-anteciparam-no-distanciamento-social-cresceram-mais-apos-a-pandemia.html